
Dizem que a verdade é uma só. Mas, se perguntarmos a um protestante de qualquer vertente quem está certo em matéria de doutrina, ele dirá que a verdade está na Bíblia e que, iluminado pelo Espírito Santo, pode compreendê-la. Perguntemos, então, a outro protestante que discorda do primeiro, e ele nos dará a mesma resposta. Perguntemos a um terceiro, de uma denominação que os dois primeiros consideram herética, e ele também nos dirá que é iluminado pelo Espírito. E assim sucessivamente, até chegarmos a um beco sem saída onde todos estão certos – o que, logicamente, significa que todos estão errados. Se a luz divina revela uma verdade única e imutável, por que diabos o Espírito Santo parece agir como uma entidade esquizofrênica, inspirando milhares de interpretações contraditórias da mesma Escritura?
Eis aqui o calcanhar de Aquiles da Sola Scriptura, a doutrina protestante que afirma que a única fonte de autoridade legítima na fé cristã é a Bíblia, interpretada pelo crente sob iluminação do Espírito Santo. À primeira vista, soa admirável: um apelo à liberdade, um convite à relação direta com Deus, sem a interferência de padres, bispos ou tradições humanas. Mas esse edifício de autonomia e clareza se desfaz com a primeira rajada de vento da lógica elementar. Pois se a Bíblia é tão clara e autoexplicativa, por que os próprios reformadores, supostamente guiados pelo Espírito, entraram em conflitos teológicos violentos desde o primeiro momento? Lutero chamava Zwinglio de “herege e possesso”; Calvino mandou Serveto para a fogueira; os anabatistas, que levavam a Sola Scriptura mais a sério do que todos, eram perseguidos tanto por católicos quanto por outros protestantes. Todos alegavam basear-se exclusivamente na Escritura, todos se diziam iluminados, todos excomungavam uns aos outros.
Aqui surge a questão inevitável: se não há um critério superior às interpretações individuais, como distinguir uma verdadeira iluminação do Espírito Santo de uma ilusão subjetiva? Se cada um pode, de forma independente, acessar a verdade absoluta, então a verdade se fragmenta em tantas versões quanto forem as vontades humanas. Mas uma verdade fragmentada não é uma verdade – é apenas a soma de opiniões concorrentes. E se a verdade depende da subjetividade de cada leitor da Bíblia, então ela não é objetiva, e se não é objetiva, não pode ser divina. O próprio princípio protestante implode ao contato com a lógica mais elementar.
É aqui que o argumento protestante dá um salto espetacular da razão para o misticismo. Como resolver a contradição evidente? Simples: apelando para um critério que, na prática, não é critério algum. Dizem-nos que o Espírito Santo ilumina os verdadeiros crentes e que a Escritura, em sua clareza, sempre conduzirá à verdade correta. Mas, se todos os lados alegam estar iluminados e todos divergem entre si, só há duas opções: ou Deus abandonou a cristandade ao caos doutrinário (o que é impossível), ou o princípio da Sola Scriptura é um equívoco.
Para escapar desse labirinto lógico, alguns protestantes tentam se agarrar à “coerência interna” da Bíblia como salvaguarda, argumentando que a verdadeira interpretação será sempre aquela mais harmoniosa com o texto. Mas a Bíblia, como todo livro, não se autoexplica: um texto não fala sozinho, ele precisa ser lido, compreendido, interpretado. Sem um critério externo objetivo, “coerência interna” se torna uma expressão vazia, pois diferentes leitores encontrarão diferentes coerências de acordo com seus próprios pressupostos.
Não é por acaso que o protestantismo, que começou como um movimento que prometia libertar o cristão do jugo das “tradições humanas”, terminou afogado em um mar de denominações, cada uma reivindicando para si a interpretação correta da Escritura. A ironia é brutal: ao negar qualquer autoridade externa na interpretação da Bíblia, a Sola Scriptura acabou por transformar cada indivíduo em sua própria autoridade máxima, exatamente o relativismo que os reformadores queriam evitar. Em um curioso paralelo com a anarquia política, a ausência de um critério objetivo superior à vontade individual levou ao caos e à fragmentação.
Se um princípio leva necessariamente ao seu oposto, ele está fundamentalmente errado. O sonho protestante de uma fé simples, direta, acessível a todos, sem a “burocracia” de uma autoridade central, não apenas fracassou – ele fracassou de maneira inevitável e previsível. Pois um edifício sem alicerces pode até impressionar no momento da inauguração, mas está condenado à ruína desde o primeiro tijolo.
O paradoxo final é irresistível: a própria sobrevivência do protestantismo depende da existência da Igreja Católica, a única instituição que, apesar de toda a oposição, continua sendo um ponto de referência histórico e teológico. Sem ela, os protestantes não teriam uma Bíblia para chamar de sua, não teriam uma tradição doutrinária para negar e nem uma autoridade contra a qual se rebelar. A Sola Scriptura, no fundo, é uma sombra do próprio catolicismo, um grito de independência que não consegue se sustentar sem a figura materna contra a qual se define.
Dizem que a verdade liberta. Mas a verdade, antes de libertar, precisa ser reconhecida. E enquanto a Sola Scriptura continuar sendo o esteio de um cristianismo sem critério, a única coisa que continuará libertando será o orgulho individual de cada novo reformador, pronto para fundar mais uma igreja “baseada na Bíblia”.