
A Quaresma chega como um chamado à conversão, um tempo de penitência, um convite ao recolhimento e à mortificação do espírito, mas, curiosamente, para muitos, ela é apenas uma estação temporária de religiosidade performática, um espetáculo sazonal de piedade conveniente. De repente, brotam fiéis que, nos outros meses do ano, vivem como se Deus fosse uma nota de rodapé irrelevante, mas que agora passam a ostentar cruzes em cinzas sobre a testa, fazem jejum de carne às sextas-feiras e até ensaiam um arrependimento lacrimoso de pecados que, sabem bem, voltarão a cometer sem grandes remorsos quando a Páscoa passar. Eis o paradoxo: uma Quaresma de teatro, um sacrifício sem substância, um ritual sem vida interior.
Que conversão é essa, cujo prazo de validade coincide com o ciclo do calendário litúrgico? Que penitência é essa, que se desfaz como fumaça assim que chega a Vigília Pascal? Como entender um catolicismo episódico, um cristianismo sazonal, que se ativa e se desativa como uma assinatura de streaming, disponível sob demanda, conveniente para os momentos certos e ausente quando se exige coerência de vida? O próprio Cristo não disse que se deve tomar a cruz todos os dias (Lc 9,23)? O Evangelho, por acaso, nos exorta a ser santos durante quarenta dias e dissolutos nos trezentos e vinte e cinco restantes?
A superficialidade espiritual desses católicos de estação revela algo mais profundo: a incapacidade de enxergar a vida como um drama real, no qual cada escolha, cada pensamento, cada ato tem consequências eternas. Vivem como se Deus fosse um espectador distante, um mero auditor dos seus breves acessos de piedade sazonal. Reduzem a fé a um protocolo religioso, um espetáculo emocional que pode ser abandonado sem grandes prejuízos assim que o relógio litúrgico der a permissão. E assim, repetem o ciclo: pecam sem escrúpulos, brincam com o inferno o ano inteiro, fazem sua breve Quaresma como um respiro de alívio, uma expiação superficial, e depois voltam ao mundo, como se nada tivesse acontecido.
Mas não são apenas os católicos de calendário que manifestam essa confusão. Há os que levam a sério a Quaresma, mas não fazem ideia do que estão fazendo. Praticam jejuns como um malabarismo ascético, seguem as regras sem compreender sua lógica interna, vivem a penitência como um fardo a ser suportado, como se Deus exigisse sofrimento pelo sofrimento, sem sentido e sem propósito. Imaginam que a renúncia de carne às sextas-feiras é um castigo arbitrário, que a mortificação é um capricho e que o silêncio e o recolhimento são apenas tradições rígidas sem real conexão com a alma. Reduzem a espiritualidade a um conjunto de normas frias, como fariseus que seguem a letra da lei sem tocar seu espírito. Não percebem que a Quaresma não é apenas um tempo de sofrimento, mas um tempo de redenção, de transformação profunda da alma, um convite ao abandono do supérfluo para que reste apenas o essencial: Deus.
E o que é mais trágico: há os que cumprem todas as obrigações externas da Quaresma, mas negam sua substância, seu chamado mais profundo. Jejuam de carne, mas devoram seus irmãos com a língua afiada da maledicência. Fazem orações, mas não amam. Vão à missa, mas saem dela os mesmos, intocados pela Graça. Imaginam que a fé seja um conjunto de fórmulas mágicas, que basta seguir a coreografia correta para se estar em comunhão com Deus. São aqueles que reduzem a religião a um mecanismo vazio, um ritualismo sem alma, como se Deus estivesse preso em regras frias e não olhasse para o coração.
A Quaresma não é um teatro. Não é uma encenação. Não é um breve momento de culpa que pode ser compensado com alguns sacrifícios simbólicos. A Quaresma é um tempo de guerra. Guerra contra o pecado, contra as inclinações da carne, contra a mediocridade espiritual, contra essa tibieza que nos faz pensar que basta pouco para ser santo. A Quaresma é a preparação para a cruz, e quem não quer carregar a cruz não terá parte na ressurreição. O cristianismo não é um clube social nem uma experiência espiritual confortável. É um chamado radical à conversão, um desafio brutal a morrer para o mundo e viver para Deus. E isso não se faz em quarenta dias: se faz em todos os dias, até o último suspiro.
Não se trata, portanto, de viver a Quaresma como um evento isolado no ano, mas de entender que ela é um espelho do que deveria ser toda a nossa vida cristã. Penitência, oração e caridade não são adereços temporários; são as colunas de uma existência realmente voltada para o Céu. Quem não vive assim fora da Quaresma, na verdade, não a vive nem mesmo dentro dela. O tempo litúrgico apenas revela o que já está no coração: aqueles que são de Cristo e aqueles que só brincam de ser. A pergunta é simples: você está disposto a viver a Quaresma como um caminho de conversão real, ou apenas como uma convenção religiosa vazia que se dissolve com o tempo?
A resposta a essa pergunta não virá dos lábios, mas da vida.